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 -  Atualizado 06/09/2025

O Caminho do Oleiro | De Grottaglie (Itália) a Talavera de la Reina (Espanha) e Alentejo (Portugal): as técnicas ancestrais que unem os maiores centros cerâmicos europeus

Publicado por: Silvia Oliveira Alentejo, Espanha, Grottaglie, Itália, Portugal, São Pedro do Corval, Talavera de la Reina

Há uma linha tênue que conecta o sul da Itália ao centro de Portugal, passando pelo coração da Espanha. Não está traçada em nenhum mapa geopolítico, nem é feita de estradas asfaltadas ou fronteiras.

É uma veia ancestral subterrânea, um rio de argila crua que brota da terra. Um saber regional passado de geração em geração pelas mãos de mestres oleiros que transformam arte em narrativa cultural e histórica.

Resolvi percorrer uma jornada de fornos e pincéis milenares em busca dessa alma da Europa que pulsa nos ateliês de Grottaglie, Talavera de la Reina e Alentejo – Itália, Espanha e Portugal, respectivamente.

GROTTAGLIE: O LABIRINTO DE OFICINAS ENTALHADAS NA ROCHA

Quando decidi seguir esse fio de Ariadne cerâmico, desembarquei em Grottaglie, no sul da Itália, pela primeira vez. Essa pequena cidade da Puglia trata a cerâmica não só como arte, mas como a essência da própria respiração.

No alto de uma colina, à beira do desfiladeiro, Grottaglie (província de Taranto) está a 560 quilômetros de Roma. Pela distância da capital italiana — e ainda pouco conhecida pelos brasileiros — muitos viajantes não incluem o destino numa primeira viagem para cá.

Eu mesma só fui atraída quando percorri os Santuários Italianos há alguns anos e descobri que Grottaglie estava a tão somente 2h30 de San Giovanni Rotondo, uma das cidades do meu então roteiro peregrino.

Mas se você vier de outra região, talvez prefira pegar um voo até aqui. O aeroporto mais perto de Grottaglie está na cidade de Brindisi (50 km). Já o aeroporto de Bari, porta de entrada para toda a região da Puglia, está a 100 km de distância. O trajeto do aeroporto maior (Bari) até o polo ceramista leva em torno de 1 hora.

A título de geolocalização, Grottaglie fica a 45 minutos de Alberobello, o destino clássico da região conhecido pelos trullis, aquelas casinhas tradicionais de pedra seca com telhados cônicos de pedra construídos sem argamassa.

Apesar de não entrar na agenda do turismo de massa tradicional, Grottaglie é famosa no mundo inteiro pela sua cerâmica artesanal colorida, cheia de detalhes e carregada de história.

A minha chegada aqui não foi marcada por um grande portal, mas por uma descida a cavernas e grutas adentro. Mergulhei num labirinto de escadarias e arcos medievais, seguindo um cheiro característico de terra molhada que pairava no ar.

Era o perfume do ofício, um farol invisível que me guiava em direção ao famoso Quartiere delle Ceramiche. Em algum momento, já não me vi mais em uma simples rua, mas no ventre pulsante da tradição cerâmica italiana. Foi ali, naquele bairro-artefato vibrante e colorido, que minha peregrinação pelo barro verdadeiramente começou.

 Um emaranhado de fornos nas vielas de argila e tradição

Ao caminhar por aqueles becos, travessas e alamedas estreitas, descobri mais de cinquenta oficinas e ateliês entalhados na própria rocha, como se fossem os nichos de uma imensa catedral secular dedicada aos artesãos.

Cada centímetro daquele lugar exalava história e pó de argila seca. A Via Francesco Crispi se revelou a artéria principal desse universo, um corredor vibrante repleto de lojas e oficinas de artesanato, onde o som dos tornos elétricos se misturava ao balanço do italiano animado.

Em muitas delas, placas convidativas oferecem “prova di tornio” — uma experiência única onde qualquer um pode se sentar e, sob a paciência guiada de um maestro maiolicaro, tentar domar o barro em uma aula prática sobre esta arte milenar.

Em apenas dois dias seria impossível conhecer todas as olarias, lojas e portinhas da cidade. Destaco apenas algumas que cruzaram o meu caminho e sentidos, como a Ceramiche Marcello Fasano, Bottega Ceramica Di Fasano Antonio, Bottega Vestita, Carpe diem Ceramiche di Leonardo Caramia, Bottega Andrea Antonazzo Ceramiche e Calabrese Markus Ceramiche, que também fica na Via Francesco Crispi, mas não tem site oficial. (Para ver o contato das outras, clique nos links.)

Nessa busca, vi nas mãos calejadas dos ceramistas, entre mestres e jovens artistas, um elo direto com a Magna Grécia, quando os primeiros fragmentos cerâmicos surgiram aqui. A história de Grottaglie, aliás, não é esculpida pelo tradicional mármore italiano, mas na argila vermelha e fértil que brota de seu solo, uma dádiva geológica que ditou a curva do destino: a famosa terracotta!

O próprio nome, que vem do latim “grutas”, sussurra suas origens: uma rede de cavernas escavadas pela erosão e pela mão do homem, acabaram servindo de abrigo, de oficina e de fornalha para os primeiros oleiros, entre eles gregos, romanos, bizantinos e normandos.

Mas foi somente no século 15 que o coração da produção regional encontrou seu lar definitivo. Assim nasceu a Grottaglie que conhecemos hoje, um polo dentro da Itália dedicado inteiramente à alquimia do barro.

Aqui, testemunhei técnicas imemoriais onde o gesto do oleiro é um ato atávico, uma dança primordial com o barro que conta histórias milenares. A produção utilitária – ânforas para o azeite e o vinho, jarros para a água, potes para a conserva de alimentos – abasteceu todo o sul da Itália.

Mas foi a maiolica artística (guarde esse nome), com seu esmalte branco e suas decorações brilhantes, que concedeu a fama que tem hoje. Quando entramos nas oficinas, já somos hipnotizados pelas mãos ágeis do maestro maiolicaro, que acariciam gerações de barro.

O mestre, orgulhoso, me mostra o bianco di Grottaglie, o esmalte branco leitoso que serve de tela para as cores vibrantes da tradição: o amarelo ouro, o azul cobalto, o verde musgo.

É possível, inclusive, fazer uma aula de cerâmica em diversas oficinas da cidade (duas horas por 65 euros), com direito a moldar a argila em uma roda de oleiro para transformá-la na nossa própria obra de arte.

A roda de pé, movida por um impulso suave do artesão, gira com uma cadência hipnótica. A queima em forno a lenha, uma dança precisa de tempo e temperatura, confere às peças uma qualidade única, impossível de replicar industrialmente.

(Abrindo um parêntese, lembrou-me muito — ainda que em outra escala e proposta — o trabalho das Mulheres do Jequitinhonha, no norte de Minas, viagem em que tive a oportunidade de penetrar no universo ceramista feminino do sertão mineiro.)

Os motivos das pinturas de Grottaglie são, quase sempre, uma homenagem à vida rural, como camponeses, folhas de parreira e uvas suculentas. Já os galos, símbolo de vigilância e fertilidade, tornou-se o motivo icônico, um emblema de identidade que até hoje cacareja orgulhoso em pratos e jarras.

Uma visita a Grottaglie se torna ainda mais inusitada quando você percebe que a nobreza da cidade não é resultado de uma coroa imposta. Trata-se de uma identidade pacientemente moldada, queimada e esmaltada ao longo de milênios, tornando-a não apenas a capital da cerâmica da Puglia, mas a guardiã da mais autêntica tradição oleira da Itália.

DICAS DA MATRACA

Visite a Cantina due Palme (Via Calò, 56), adega famosa com um show room completo em Grottaglie. Leve o primoroso Primitivo e o Negroamaro (a alma dos vinhos tintos robustos e saborosos da Puglia) armazenados em ânforas de cerâmica de Grottaglie, uma simbiose perfeita de terroir e tradição. Na trattoria La Luna nel Pozzo (no final da rua principal), prove a Orecchiette con Ragù (massa tradicional da Puglia) e o frisella pugliese, um pão duro amolecido com água e regado com tomate e azeite, servido em tigelas de cerâmicas rústicas.

– Não deixe de conhecer o Castelo Episcopio, que abriga o Museo della Ceramica (Museu da Cerâmica), com peças e produções locais que vão da pré-história até os nossos dias. Já a Casa Vestita (foto acima), é uma das oficinas mais famosas da cidade. Conserva, além de ânforas e antigos objetos de cerâmica no seu jardim, uma igreja rupestre medieval com afrescos.

– Apesar do calor úmido do verão, a melhor época para conhecer a cidade é em agosto, quando acontece o concorrido Festival dela Ceramica di Grottaglie.

TALAVERA DE LA REINA: ONDE OS MUROS SÃO LIVROS DE AZULEJO

Ao cruzar os céus para a Espanha, senti a primeira dessas conexões inesperadas. O avião sobrevoou o Mediterrâneo, o mesmo mar que, séculos atrás, carregou para a Europa as técnicas de pintura de esmalte branco do Oriente, através da Ilha de Maiorca, daí o nome – segredo revelado – maiolica ou majólica.

Cheguei a Talavera de la Reina, um município da província de Toledo, na comunidade de Castilla de La Mancha, pelo trilho mais simples e direto: um trem desde Madri. O trajeto de 120 km, feito em apenas 1h30, transforma o destino num bate e volta fácil e redondo a partir da capital espanhola.

Já havia estado aqui no início dos anos 2000, quando fazia meu mestrado em Turismo Internacional em Las Palmas de Gran Canaria, nas Ilhas Canarias. Mas Talavera voltou a entrar no meu radar quando a cerâmica da cidade foi eleita Patrimônio Imaterial da Humanidade pela UNESCO, em 2019.

A cerâmica de Talavera de la Reina não pode ser entendida sem a profunda influência árabe e moura que moldou sua identidade desde a Idade Média. Os muçulmanos que ocuparam a Península Ibérica trouxeram técnicas avançadas de cozimento, o uso do torno e, sobretudo, o esmalte estanhado branco (maiólica, olha ela aí de novo), que permitiu criar superfícies lisas e brilhantes, perfeitas para a aplicação de pigmentos minerais.

Foi também graças a essa herança que cores como o azul cobalto das nossas conhecidas faianças — inspirado nas rotas comerciais islâmicas com o Oriente — se tornaram marca registrada da cerâmica talaverana.

Os padrões geométricos, as formas vegetais estilizadas e o gosto pela simetria decorativa que ainda hoje se veem nos azulejos da cidade são ecos diretos desse legado andaluz, que transformou Talavera em um dos centros cerâmicos mais prestigiosos da Europa a partir do Renascimento.

Se por um lado a cidade da cerâmica italiana é rural, Talavera é aristocrática.

O ar enigmático da Ciudad de la Cerámica espanhola tem origem no seu DNA: esta grande área, fundada na confluência dos rios Tejo e Alberche, já foi o assentamento de povos celtas que construíram algumas das ruínas mais antigas da região.

A herança azulejar que dá cor à planície castelhana

Chegar a Talavera de la Reina é adentrar um santuário laico da cerâmica. Meu primeiro passo é inevitável: o Museu de Cerâmica Ruiz de Luna. Aqui, a história ganha forma e cor. O acervo narra séculos de produção, das louças renascentistas que seduziram a realeza aos majestosos painéis que ainda hoje definem a paisagem urbana da cidade. É a introdução perfeita para entender por que este é o coração batente da cerâmica espanhola. (Importante: os horários de funcionamento do museu variam conforme a temporada, consulte no site oficial do museu antes de ir.)

Dali, a jornada continua a pé até a Basílica de Nuestra Señora del Prado. Se o museu é o prelúdio, a basílica é a obra-prima. Seu interior é uma aula de azulejaria: capelas e paredes inteiras forradas de azulejos, um mergulho cromático que vai do azul cobalto tradicional às policromias vibrantes, muitos com a assinatura da escola de Juan Ruiz de Luna (1863-1945), considerado um dois maiores ceramistas espanhóis.

Do lado de fora, os Jardins del Prado revelam outra coleção, desta vez a céu aberto: bancos, fontes e escadarias ornamentadas com azulejos que, sozinhos, justificam a viagem.

O centro histórico pulsa ao redor da Plaza del Pan, a sala de estar da cidade. Dali, inicio minha “caça aos murais” pela Ruta de los Murales Cerámicos. Espalhados pela cidade, estes grandes painéis contam a história de Talavera como um livro aberto de azulejos — cenas de ofícios, festas populares, fauna local e a importância da água no desenvolvimento do município.

É um passeio gratuito e perfeito para entender a cerâmica como linguagem viva da cidade. Mapas oficiais da rota, disponíveis online e no posto de turismo (localizado no Parque Cañillo), ajudam a organizar o percurso.

As oficinas e as fronteiras fluidas do barro

Talavera não é um museu de vitrine, mas uma oficina aberta. A verdadeira essência está nos Talleres Visitables, um circuito de oficinas que abrem suas portas para mostrar o processo completo, como os talleres Alfar el Carmen, Artesanía Talaverana, Bermejo, Santos Timoneda, entre outras.

São nesses espaços que a magia acontece: é possível presenciar o amassar da argila, o rodopiar hipnótico do torno, a secagem, a primeira queima, a aplicação do esmalte branco e, por fim, a meticulosa pintura. É necessário agendar com antecedência (clique nos links acima). As reservas devem ser feitas diretamente em cada oficina e o acesso custa € 5 por pessoa.

Visitei ainda o Centro Cerâmico Talavera, uma referência com premiações nacionais, showroom e horários estendidos em dias úteis. Ali, observei a técnica que define e protege a “Denominação de Origem de Talavera”: o desenho é, primeiro, todo contornado em azul cobalto, definindo cada figura, flor ou animal fantástico. Só então as outras cores regulamentadas – amarelo, laranja, verde, violeta – são preenchidas com pincéis de pelo naturalmente afilados, numa arte de paciência monástica.

Em Talavera, a multiculturalidade europeia e global torna-se palpável. A influência mourisca que pintou de azul a cerâmica italiana encontrou aqui sua expressão máxima.

Deixo Talavera com as mãos simbolicamente manchadas de engobe, uma pequena peça imperfeita na mochila e a certeza de que a cerâmica é o fio que tece esta Europa de conexões inesperadas.

DICAS DA MATRACA

Nenhuma experiência em Talavera de la Reina é completa sem uma parada gastronômica nos bares e restaurantes da Plaza del Pan, a praça mais famosa do centro histórico. Prove o suculento cochinillo (leitão) ou o cordero asado (cordeiro), invariavelmente servidos em travessas de barro que mantêm o calor e conferem um sabor singular ao alimento. Tudo isso, é claro, regado com um potente vinho da Denominação de Origem La Mancha. É a simbiose perfeita entre a arte da olaria e a a mesa talaverana.

ALENTEJO: UMA JORNADA ATÉ SÃO PEDRO DO CORVAL, MAIOR POLO OLEIRO DE PORTUGAL

Deixei para trás a grandiosidade barroca dos murais de Talavera de la Reina e desembarquei em uma planície dourada, onde o silêncio só é quebrado pelo canto dos pássaros. Depois de estar mais de 10 vezes a trabalho na capital portuguesa ao longo da última década, consegui me desviar – enfim – do roteiro convencional e entrar na essência do país: o Alentejo, considerado a roça chique portuguesa.

Monto base em Évora, a apenas 1h30 de trem de Lisboa. Entre as diversas cidades do meu roteiro (como Monsaraz, Elvas, Beja, Estremoz e Marvão) meu foco maior não está entre as mais conhecidas ou cheia de monumentos, mas sim numa pequena localidade: São Pedro do Corval.

No pequeno povoado, a 40 minutos de Évora e a 10 minutos de Monsaraz, ninguém trata o título de “capital da cerâmica” como apenas um slogan bonito, é uma realidade tangível e palpável. De fato, São Pedro do Corval é o maior polo oleiro de Portugal, um lugar onde o trabalho com o barro dita o ritmo da vida. Uma tradição ancestral e erudita que emana de mais de vinte oficinas ativas, todas concentradas num raio de poucos quilômetros, bem próximas uma da outra.

A entrada na vila é anunciada por jarros gigantescos de barro – as talhas – que margeiam a estrada, como guardiões de um segredo milenar. O ar, quente e pesado pelo típico calor alentejano, carrega um cheiro inconfundível: o perfume da terra molhada e da lenha queimando.

É o mesmo cheiro que senti em Grottaglie, na Itália. A primeira conexão, inesperada e forte, chega através dos sentidos antes mesmo de qualquer explicação. A matéria-prima é universal, a linguagem do barro também.

Como só teria um dia para derriçar o lugar, minha primeira parada é quase um rito de passagem: a Casa de Barro – Centro Interpretativo Oleiro, instalada no edifício de uma antiga olaria, numa das principais ruas do vilarejo.

O espaço é pequeno, mas é a chave para entender São Pedro do Corval. Aqui, compreendo a profunda diferença entre esta e as outras paradas da minha rota oleira.

Conhecer a Casa de Barro é essencial antes de começar a explorar as diversas fábricas de São Pedro do Corval, já que aqui obtemos um mapa com a localização de todas as olarias e podemos ver exemplos dos trabalhos de cada uma delas.

Se em Talavera de la Reina a cerâmica é narrativa pictórica e em Grottaglie o simbolismo é rural, em Corval o que impera é a funcionalidade transformada em arte. As peças são robustas, pesadas, feitas para serem usadas no dia a dia.

As formas são arcaicas, herdadas diretamente dos romanos e muçulmanos que passaram por aqui: bacias, potes, vasilhas de mel, cantis para vinho e jarras de água com pescoço estreito para manter o líquido fresco.

A decoração é mínima, quase um haicai visual: alguns traços brancos sobre o fundo marrom-avermelhado do barro, uns riscos verdes, motivos florais simples.

A beleza não está na complexidade, mas na verdade da forma, na honestidade do material. É uma estética alentejana: sóbria, útil e profundamente bela em sua simplicidade.

Oficinas de portas abertas: o ritmo do torno

Num percurso de pouco mais de 2 km pelas vias principais de São Pedro do Corval, você vai passar pelas portas das Olaria Rui Patalim, Olaria Tavares, Olaria Bulhão, Olaria Joaquim Lagareiro, Olaria Luís Janeiro, Olaria Carrilho Lopes, entre outras. São 22 olarias ativas no total. (Clique nos links para ver o endereço.)

A verdadeira imersão acontece quando cruzamos a porta de uma das muitas olarias. Diferente de Talavera, não é preciso agendar com muita antecedência. Basta chegar e, se o oleiro não estiver no meio de uma queima, ele recebe você com a simplicidade e o imenso orgulho de quem conseguiu transformar vocação em ofício.

O tempo dentro desses ventres de barro e fogo, onde o tempo ganha forma nas mãos do oleiro, desacelera. O som dominante é o chiado suave do torno de vara, uma tecnologia ancestral que os oleiros de Corval ainda preferem ao torno elétrico.

É uma dança de corpo inteiro: o artesão empurra uma vara com o pé, fazendo a base girar, enquanto as mãos, molhadas, levantam as paredes de barro com uma precisão hipnótica.

Um espetáculo de equilíbrio e força, onde cada gesto é herdado. Observo novamente as mãos do oleiro, hábeis e intuitivas, e observo as mesmas mãos que vi na Itália.

Esta é a fronteira mais fluida de todas: a da transmissão do conhecimento prático, de mestre para aprendiz, do pai para o filho, do saber que sempre ignorou os mapas das conquistas geopolíticos.

Aqui, uma novidade fascinante: muitas oficinas são administradas por mulheres, uma quebra de paradigma em uma arte tradicionalmente masculina.

Entre elas, Célia Macedo (que trocou uma carreira acadêmica bem-sucedida em Londres e transformou a paixão pela cerâmica numa profissão), além de Nélia Patalim (a de regata verde na foto acima), herdeira de uma geração inteira de oleiros.

São elas que comandam o torno, misturam os engobes (argilas coloridas) e gerenciam os negócios, injetando uma energia contemporânea em uma tradição secular.

DICAS DA MATRACA

O maior polo ceramista de Portugal pode ser visitado o ano inteiro. Mas, se puder, venha durante o Festival Ibérico da Olaria e do Barro que, normalmente, acontece em maio. A vila se transforma em um palco vivo de workshops, demonstrações, música e mercados, com a participação de oleiros não só de São Pedro do Corval, mas de toda a península Ibérica, celebrando profundamente essas conexões culturais.

– Almoce a tradicional culinária portuguesa com um buffet alentejano na Adega do Cachete ou vá ao Restaurante Aloendro (em Reguengos de Monsaraz, a 10 minutos do centro de Corval). Com qualquer prato – do polvo ao cordeiro ou tamboril – peça o pão alentejano para acompanhar, passado em um inesquecível azeite local dourado. A experiência é elevada ao máximo quando a comida é servida em uma tigela de barro preto de Corval. Para beber, um vinho tinto encorpado de Reguengos de Monsaraz, uma Denominação de Origem de excelência, servido em um robusto copo de barro.

Cromeleque dos Almendres: para ampliar sua experiência sensorial e a título de curiosidade, o Alentejo tem um dos mais antigos monumentos megalíticos do mundo. Conhecido como o Stonehenge Português, o Cromeleque dos Almendres (um círculo de pedras pré-históricas) com 95 monólitos de pedra, está a 1h de São Pedro do Corval. Para ir até lá, é recomendado estar de carro ou contratar uma excursão.

CONEXÃO FINAL: O BARRO E FOGO SEM FRONTEIRAS

Sentada no largo da igreja azul e branca, olhando para a planície que se estende até Espanha, reflito sobre esta rota. De Grottaglie a Talavera de la Reina e, agora, a São Pedro do Corval. Três expressões radicalmente diferentes da mesma arte.

A conexão inesperada é que a simplicidade de Corval dialoga diretamente com a origem de tudo. O barro é o elo primordial, a matéria-prima pura lembrando que, antes de ser arte, a olaria foi sobrevivência, foi guardar a água, foi cozinhar o pão, foi celebrar o vinho.

No final, percebi que essa rota não era sobre cerâmica, mas sobre conversas. O barro foi só a desculpa perfeita para ouvir histórias de quem molda o mundo com as mãos — seja na Itália, na Espanha ou em Portugal.

É a lembrança perfeita de que a verdadeira multiculturalidade europeia não está apenas nas grandes narrativas da pintura, da arquitetura ou dos grandes monumentos. Está, também, no gesto humilde de um ceramista num pequeno povoado alentejano, que repete o mesmo movimento do seu colega italiano ou espanhol.

Todos unidos pela mesma matéria-prima, pelo mesmo fogo e pela mesma paixão intrínseca de criar objetos que contêm saberes, história, ancestralidade e cultura. Esta é a Europa que me fascina: a que se molda, todos os dias, no fazer artesanal tão milenar quanto folclórico.

Caminho do Oleiro, fruto de um devaneio meu e que agora batizo com esse nome a tradição, é mais do que uma rota turística, é uma peregrinação às origens. É a prova de que as verdadeiras fronteiras são as que criamos com nossas mãos, mentes e sentidos para sentir a história, verdadeiramente, pulsar.

SERVIÇO:

1. Assim como a Toscana, a melhor maneira de percorrer os vilarejos da Puglia é de carro. Mas caso prefira (ou só possa utilizar) o transporte público, a  Ferrovie del Sud Est (FSE) oferece o trajeto de Alberobello a Grottaglie em 2h45, com direito à baldeação (um pedaço é feito de ônibus), enquanto que de carro você faz o mesmo percurso de 40 km em menos de uma hora.

2. Para ir de Madri a Talavera de la Reina você pega o trem, operado pela RENFE, na Estação Atocha (a principal estação de metrô/trem da capital espanhol) e desce na Estação principal de Talavera de la Reina. Se preferir ir de ônibus (o tempo é similar, em torno de 1h30 e mais barato) você sai da Estación Sur de Autobuses (que está a menos de 2 km da Atocha) e desce na Estación de Autobuses de Talavera de la Reina. O trecho de ônibus é operado pela empresa Samar.

3. O Alentejo é coberto pelo transporte público, mas as melhores rotas e horários estão entre as principais cidades do circuito alentejano. De Lisboa a Évora (a maior cidade da região), você pode pegar um trem na Estação de Santa Apolônia ou na Estação Oriente, em Lisboa, e descer na estação central de Évora. O trecho é feito pela empresa ferroviária Comboios de Portugal (CP). Daqui a São Pedro do Corval prefira o carro. Táxis fazem o percurso com preços a combinar diretamente com o motorista. De ônibus até Évora (um pouco mais demorado, embora mais barato) a rota é operada pelas empresas FlixBus e Rede Expressos.

Leia também: 

+ Todos os meus posts sobre Itália
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