Pixel Code
 -  Atualizado 24/08/2010

É proibido viajar!

Publicado por: Silvia Oliveira Matraqueando

Uma amiga me enviou por e-mail este texto do psicanalista italiano (radicado no Brasil) Cantardo Calligaris. A coluna, sob o título É proibido viajar, foi publicada hoje na Folha de São Paulo. “Uma outra forma de ver a questão, (…) principalmente para quem já viajou sem muito dinheiro, sem reserva de hotel e com roteiro flexível”, diz ela. Exatamente como nós duas já fizemos há muuuuuito tempo quando nos achávamos as Amyr Klink dos trens europeus. Ainda que eu questione algumas observações feitas pelo autor, o artigo é muito bom e faz refletir. Como só está disponível para assinantes do UOL ou da Folha, vou colocá-lo aqui.

É proibido viajar
Cantardo Calligaris

A modernidade, que começou com a livre circulação, acaba proibindo a viagem

No episódio dos jovens pesquisadores brasileiros barrados em Madri, as autoridades espanholas agiram como se o cônsul-geral do Brasil contasse lorotas para facilitar o trânsito de imigrantes ilegais. O desrespeito justifica a “retaliação” brasileira. No mais, a cada dia, as fronteiras do mundo (não só do primeiro) barram alguém que tenta viajar, sobretudo se for jovem, solteiro e sem as aparências de uma “vida feita”. Ao atravessar uma fronteira, o passaporte prova que estamos em paz com a Justiça de nosso país.

As outras nações devem decidir se somos hóspedes desejáveis. Nas últimas décadas, as “condições” para ser desejável se multiplicaram. Hoje, no caso da Espanha: 1) 70 por dia de permanência planejada; 2) passagem de volta marcada; 3) reserva de hotel, já pago; 4) para quem se hospedar com parentes, formulário preenchido pelos mesmos; 5) quem se desloca para trabalhar deve dispor de um contrato assinado. Normas muito parecidas valem na maioria dos países. O escândalo é que essas condições podem nos parecer “aceitáveis”. Afinal, qualquer Estado quer proteger o emprego de seus cidadãos impedindo a chegada de imigrantes não-autorizados, não é? Pois é, Michel Foucault é mesmo o pensador para os nossos tempos: o sistema social e produtivo dominante ordena nossas vidas furtivamente, convencendo-nos de que não há opressão, mas apenas necessidades “racionais”.

Se achamos essas regras “aceitáveis”, é porque já adotamos a idéia de que, no nosso mundo, só é legítimo ter moradia fixa e profissão estável. As pessoas com moradia fixa podem, quando elas dispõem dos meios necessários, adquirir uma passagem de ida e volta e sair de seu lar seguindo um programa pré-estabelecido – ou seja, podem ser, ocasionalmente, turistas. Escárnio: prefere-se que os turistas sejam otários, pagando de antemão. Há uma pousada melhor da que estava prevista? Você quer encurtar a viagem? Pena, você já pagou. Mas isso é o de menos. Importa o seguinte. A modernidade, que começou com a circulação (livre ou forçada) de todos os agentes econômicos, acaba parindo, nem mais nem menos, a proibição da viagem. Como assim? Pois é, viajar não tem nada a ver com férias num resort ou com ser transportado de cidade em cidade para que os cicerones nos mostrem as coisas “memoráveis”.

Para começar, viajar é usar uma passagem só de ida. – Quanto tempo você vai ficar? – Não faço a menor idéia. Um dia? Três meses? Um ano? – E você vai para onde? – Não sei. Talvez eu curta uma pequena enseada, alugue um quarto numa casa de pescadores e fique comendo caranguejos com os pés na areia. Talvez, já no avião ou pelas ruas de Barcelona, eu me apaixone por uma holandesa, um russo ou uma argelina e os siga até o país deles, por uma semana ou um mês. Se a paixão durar, ficarei por lá. – E o dinheiro? – Não sei, meu amigo. Toco violão, posso ganhar um trocado numa esquina ou no metrô. Também posso lavar pratos, ajudar na colheita, cortar lenha, lavar carros e vender pulôveres. E, se a coisa apertar, tenho endereços de parentes e conhecidos que nem sabem que estou viajando, mas não me recusarão uma sopa e um banho quente. Além disso, em Paris, quando fecha o mercado da rua Saint Antoine, sobram na calçada as frutas e as saladas que não foram vendidas; em São Paulo, Londres e Nova York, conheço dezenas de igrejas que oferecem um pão com manteiga; em Varanasi, ao meio dia, distribuem riso com curry e carne aos peregrinos.

Cem anos depois da invenção do passaporte com fotografia, chegamos nisto: uma ordem que só permite se movimentar para consumir férias ou para se relocar segundo os imperativos da produção. As regras que barram o viajante expressam nossa própria miséria coletiva: perdemos de vez o sentimento de que a vida é uma aventura. Preferimos a vida feita à vida para fazer. Para quem quiser ler sobre a história da documentação de viagem, uma sugestão: “Invention of the Passport: Surveillance, Citizenship and the State” (invenção do passaporte: vigilância, cidadania e o Estado), de Torpey, Chanuk e Arup (Cambridge University Press). Para quem quiser viajar, outra sugestão: a mentira, num mundo opressivo, é uma forma aceitável de resistência.



Newsletter

Digite seu e-mail e receba gratuitamente nossas novidades


7 Comentários

  1. mara sallai

    Seras que estes malas fecharam todos os albergues da juventude no mundo.E agora???
    Desculpas pelo egoismo: ainda bem que tenho mais de 50 ja viajei com uma muchila, sem destino, sem dinheiro, cartao de credito nem pensar….
    Quem esta chegando agora vai sofrer!!!!

    responder
  2. SÍLVIA OLIVEIRA

    Pois é, Mara,… eu também! Na minha primeira viagem a Europa (em 1997) fiquei por lá durante 30 dias. Sem nenhuma reserva de hotel e com pouquíssimo dinheiro para os padrões europeus. Sou do tempo, inclusive, que cyber café nas viagens era coisa da família Jetsons!

    responder
  3. Anonymous

    Também já fui, não como aventura,fui por intercâmbio,não tive problemas de sair da Inglaterra e depois reentrar.
    Já tinha 31 anos…Hoje estou nos 50,mas o Brasil da época era muito pior, inflação cavalar,desemprego, emprego que não dava pra viver.Era e foi a época das grandes levas de brasucas pra EU, Europa.

    Espanha e Portugal eram duas titicas,dois países perféricos, quintal da Inglaterra ou da França.

    A roda girou e hoje pensam que são melhores que nós.Por isso, e levando em conta um passeio pela História de tais países — que eles não estudam, por certo —, acho tudo que está havendo uma sujeira sem tamanho.

    Eis um texto[ do Calligari] de quem PENSA e não da corja servilista que justifica punição sem crime.Deportação é pra quem já entrou e foi pego em situação ilegal,quem ainda não entrou é aceito ou não, mas NADA justifica a humilhação, os maus-tratos;a recusa deveria ser revestida de discrição, já que se pretende defesa de interesses apenas da igrejinha local.Agir assim é que SERIA civilizado: olha, sentimos muito, mas não vai dar desta vez,faltou algo – mesmo sendo uma mentira caridosa,protocolar, na verdade um " não queremos gente como você aqui,na verdade não queremos mais gente,apenas mande o dinheiro que você gastaria, este entra bem.

    Mas civilização não é o forte da Espanha, basta ver o que fizeram na AL.Nem dela nem de nenhum outro país que vendeu seu próprio povo,exportou seus pobres sem pedir perdão por isto, aos montes, em navios.
    O Brasil os recebeu de braços abertos, deu-lhes oportunidades de uma vida digna e, literalmente, um lugar onde cair morto.Lá nem cova teriam , a não ser uma cova coletiva, do tipo que serviu pra enterrar Mozart…Se até ele…

    O revide é justo,mas muito tímido.Fosse eu presidente deste grotão,encheria navios ,alugados, de descendentes de espanhóis, portugueses, italianos,alemães – pra ficar com os maiores desovadores de miseráveis em terras alheias- e mandaria tudo de volta com uma etiqueta:de volta ao remetente,pegue que o filho é seu.

    Que países que não mandaram/mandam
    seus pobres embora, como EUA, ainda vá lá, que barrem quem quiser, mas Espanha???Portugal??
    Ahh, mas eles investem no Brasil…
    Pois que levem suas empresas, seus bancos embora,vão perder a fonte de lucros? É ruim, heim?!!
    E a desculpa de que vão se prostituir deve ser devolvida com um: vão porque vocês usam, pagam, inventaram o ofício,não foi criação nossa, veio nas caravelas, ou não estudaram História?
    Só vem para o Brasil turista pobre e que vem para fazer sexo barato.Quem pode pagar 4 mil dólares por uma aliviada faz isso em NY, né não?Depois perde o cargo , se for governador,aqui não perde nada,até se reelege,vira desembargador,sei lá eu.
    Não vivo de turismo, não me faz falta; coitado do espanhol que topar comigo, vai levar uma cluster nas fuças que é o que merece.Gente feia, cara de magrebinos.Vão comer paelha no raio que os parta.(risos)

    Lia/floripa

    responder
  4. Muricando

    A culpa é do Bush!

    responder
  5. SÍLVIA OLIVEIRA

    Lia, me diverti com seu comentário e mais: aprendi com ele. A questão é mesmo feroz. Não importa a opinião nem de onde ela venha. O que todo mundo concorda é que está tudo errado!

    responder
  6. Anonymous

    oi Sílvia, td bem??? queria te perguntar umas coisinhas da agência…vc pode me passar seu mail? bjos e gracias

    Dani Calsavara

    responder
  7. SÍLVIA OLIVEIRA

    Oi Dani!

    Para evitar incômodos alheios não coloco meu e-mail pessoal aqui. Mas você pode escrever diretamente para o e-mail da empresa, clicando no link "Contato" do site http://www.voucherpress.com.br. Dependendo do assunto, quem receber me encaminha. Ou se preferir, deixe seu e-mail aqui, que eu dou retorno!
    Um abraço!

    responder

Deixe seu Comentário






Comentários do Facebook

Matraqueando - Viagens e Comidinhas | Por Sílvia Oliveira

Todos os direitos reservados. 2006-2024 © VoucherPress | Agência de Notícias.
Está proibida a reprodução, sem limitações, de textos, fotos ou qualquer outro material contido neste site, mesmo que citada a fonte.
Caso queira adquirir nossas reportagens, entre em contato.

Desenvolvido por Dintstudio
×Fechar